Suicídio e memória no filme Elena: uma perspectiva psicanalítica
Figurar a morte é uma tarefa difícil, um esforço que sempre escapa, desliza pelas palavras. Quando a morte se dá por suicídio, torna-se ainda mais árduo por ser carregado de tabus morais, religiosos e sociais (Btshe, 2014). Se para a psicanálise, a libertação se encontra na linguagem, como libertar-se de algo que raramente se diz, raramente se retrata? A linguagem organiza, delimita e dá contorno ao indizível. Mas e quando esse indizível reside no âmago da dor, da ausência, naquilo que só se apresenta como uma ferida aberta?
PETRA (V.O)
Você foi tomando forma, tomando corpo, renascendo um pouco pra mim.
Mas para morrer de novo.
Reflexos de foto de Elena. Detalhe de seu olhar. Petra olhando pra baixo de olhos fechados.
PETRA (V.O)
E eu, com muito mais consciência para sentir sua morte dessa vez. Imenso prazer que vem acompanhado da dor.
Petra pega uma grande concha e a leva ao ouvido: ruídos de água.
PETRA (V.O.)
Me afogo em você, em Ofélias.
PETRA (V.O)
E enceno, enceno a nossa morte... pra encontrar ar...
Petra embaixo da água.
PETRA (V.O.)
Pra poder viver.
O documentário Elena, que evoca a memória e o íntimo, explora a busca da diretora Petra Costa por sua irmã mais velha, Elena, que cometeu suicídio anos antes. Convoquei a psicanálise para traçar novos caminhos a partir das significações de Petra. Ao entrelaçar os elementos discursivos, rearticulando-os, a "Outra cena" é trazida à tona. Essa “Outra cena” seria o inconsciente, onde emergem significados que fogem à superfície, à evidência. Que este seja o ponto de partida para revelar traços, fragmentos, nuances — visíveis ou subentendidos por Petra. A possibilidade de um olhar que toca a experiência de forma sensível, reparando seus desdobramentos e contemplando seus efeitos no presente. A escuta psicanalítica se atém aos sentidos que escapam, que proliferam novas compreensões, que desdobram outros significados. Já o cinema, sem dúvida, carrega em si uma de suas mais profundas vocações: a reflexão sobre sua própria imagem, sobre o sujeito, sobre a vida (Dunker, 2018).
Assim como Petra afoga-se em Elena, me afogo nas significações de Petra. Não seria a verdade da irmã que se busca, mas as representações, as sombras de Petra que, ao criar o documentário, procura por um significado diante da desolação da perda da irmã. Elena se torna essa busca sem fim, essa ausência sem nome, essa arte que invade, que deixa desarmado, exposto. O cinema e a psicanálise se entrelaçam em seus métodos: ambos trabalham com o que escapa, com o que resiste à forma. O cinema aqui se afirma não como registro do real, mas como espaço de fabulação, de encontro entre o consciente e o inconsciente (Gonçalves, 2020). As memórias, ao reformularem-se, preenchem (ou tentam preencher) as lacunas.
A narrativa de Petra Costa é tecida de forma solta, com imagens, vídeos caseiros e vozes que, como numa associação livre, emergem e se dissolvem sem seguir uma linha cronológica, mas sim a lógica do vestígio. É a memória que narra a história, a memória individual de Petra e a coletiva de familiares e amigos. Elas são como vultos, espectros que se movem na penumbra da consciência, flutuando entre o real e o imaginário (Gonçalves, 2020). O filme evoca um mal-estar, uma sensação de sufocamento pela ausência-presença de Elena, que perambula pelo espaço da cena como uma lacuna viva, uma ausência que, paradoxalmente, preenche.
PETRA (V.O.)
As memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas algumas não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia.
PETRA (V.O)
Você é minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra.
Petra dançando e girando na rua.
PETRA (V.O)
E é dela que tudo nasce, e dança.
Elena gira com a corda no palco de teatro. Petra dança na rua.
Gira com vestido esvoaçante em um salão.
Elena é, acima de tudo, ausência. É o que não pode ser dito, o que escapa à linguagem e à representação. É a arte crua, visceral, que arromba o silêncio e nos sufoca, mas também nos acolhe. Petra encontrou, no documentário, uma forma de conviver com essa ausência que a habita, uma maneira de deixar Elena partir novamente, mas desta vez com a aceitação da perda, com a consciência do que restou: uma memória inconsolável. A memória de Elena é a lacuna que se faz presente, o vazio que, mesmo sem ser preenchido, encontra sua forma de existir (Gonçalves, 2020). É habitando o espaço da ausência, que Petra compreende que, às vezes, é na falta, na lacuna, que ela encontra a própria redenção.
Referências
Bteshe, M. (2014). Elena, o filme: narrativas sobre a experiência do suicídio. Revista Eletrônica De Comunicação, Informação & Inovação Em Saúde, 8(4). https://doi.org/10.3395/reciis.v8i4.436
Dunker, C. I. L. (2018). Cinema e psicanálise: Ensaios sobre cultura e espetáculo. Editora Nversos.
Elena: um filme de Petra Costa. (2012). Recuperado de http://www.elenafilme.com/.
Gonçalves, R. d. H. (2020). Elena em Petra: O infamiliar na narrativa (auto)biográfica no cinema.